A prática - Caso
Efeitos rebote do compartilhamento de alimentos

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Autoria: Camila Castro (milatelcontar@gmail.com)  

O compartilhamento de alimentos por meio de plataformas digitais é uma das ações para eliminar as perdas e os desperdícios de alimentos. No entanto, este caso mostra efeitos rebote dessas ações.

Introdução

Este caso foi relatado no artigo Meshulam et al. (2023), que investigou o efeito rebote na economia de compartilhamento de alimentos, usando dados de mais de 750.000 itens de alimentos compartilhados no Reino Unido por meio de uma plataforma gratuita entre pares (P2P – peer to peer).

Este caso é um exemplo do conceito de efeitos rebote de iniciativas da economia circular.

Características  do caso

Tipo de caso: estudo de uma empresa

Tipo de empresa: startup

Objeto de análise: efeito rebote da proposta de valor da empresa

Grau de novidade: modelo de negócio disruptivo

Abordagem: análise de dados (data analytics)

Setor: alimentação

Estratégia: para o mercado: entre pares (P2P – peer to peer)

Resumo

Descobriu-se que, apesar das intenções de promover o consumo sustentável e melhorar a eficiência do uso de produtos existentes, a economia de custos e a conveniência proporcionadas pelas plataformas digitais de compartilhamento podem estimular uma demanda adicional por produtos e serviços.

Este aumento na demanda pode neutralizar os benefícios ambientais esperados do compartilhamento, como:

  • reduções nas emissões de gases de efeito estufa (efeitos rebote compensaram entre 59-94% dos benefícios esperados),
  • depleção de água (efeitos rebote compensaram entre 20-81% dos benefícios esperados) e 
  • uso da terra (efeitos rebote compensaram entre 23-90% dos benefícios esperados)

O estudo destaca a importância de considerar os efeitos rebote nas avaliações ambientais da economia de compartilhamento, indicando que os benefícios ambientais podem ser superestimados.

Os efeitos rebote surgem quando as economias geradas pelo compartilhamento de alimentos são gastas em outros bens e serviços, potencialmente mais intensivos em carbono, água e uso da terra.

Por que conhecer este caso?

Este caso mostra que os benefícios esperados de iniciativas de economia circular / sustentabilidade podem ter efeitos rebote que causam outros impactos ambientais e sociais.

A empresa

Para examinar os efeitos rebote do compartilhamento de alimentos P2P, os autores analisaram os dados fornecidos pela OLIO — uma plataforma gratuita de compartilhamento P2P.

Conheça o site da empresa (https://olioapp.com/en/) e sua visão de compartilhar para diminuir o desperdício, porque eles sonham com um mundo sem desperdícios.

Desperdício de alimentos

Globalmente, cerca de 2,5 bilhões de toneladas de alimentos produzidos para consumo humano são perdidos na cadeia de suprimentos a cada ano.

Este dado de desperdício de alimentos foi citado na publicação que serve de referência para esta seção. Os autores obtiveram essa informação da WWF (ONG intitulada de Fundo Mundial para a Natureza) , que considera as perdas nas fazenda (produção dos insumos básicos da alimentação).

Já o PNUMA da ONU considera que o desperdício em 2019 foi de 931 milhões de toneladas de alimentos vendidos às famílias, varejistas, restaurantes e outros serviços alimentares. Isso representa 17% dos alimentos produzidos.   

A produção de alimentos que são desperdiçados está associada a 20% do consumo de água doce, 30% do uso de terras agrícolas globais e 8% das emissões dos gases do efeito estufa (GEE).

Leia na Wikipédia em português sobre os gases do efeito estufa (GEE).

As perdas e desperdícios incluem tanto a perda de alimentos, ocorrendo nas etapas de produção (campo, colheita ou pós-colheita), quanto o desperdício de alimentos, referindo-se às perdas no varejo e no consumo.

Situação nos países de alta renda

Nos países de alta renda, o desperdício de alimentos no varejo e no nível doméstico é generalizado. Nos EUA, o desperdício de alimentos per capita anual é de cerca de 120 kg, totalizando mais de 63 milhões de toneladas por ano. No Reino Unido, são 94 kg per capita, resultando em 9,5 milhões de toneladas por ano.

Resposta pública e soluções digitais

A quantidade impressionante de desperdício de alimentos gerou clamor público e interesse em mercados secundários digitalmente mediados para redistribuição de alimentos e compartilhamento entre pares como estratégias potenciais para combater o desperdício de alimentos.

Plataformas digitais e redes de redistribuição

Plataformas digitais que operam como mercados de dois lados podem aumentar a adoção de alimentos excedentes. Modelos para otimizar a participação e o engajamento de voluntários no resgate de alimentos, a familiaridade com o compartilhamento de alimentos e a percepção ambiental e social do consumidor são fatores-chave no sucesso de plataformas de compartilhamento de alimentos.

Benefícios ambientais e motivações

O compartilhamento de alimentos tem benefícios ambientais, como a redução de emissões de GEE. As motivações para participar de plataformas de redistribuição e compartilhamento de alimentos incluem economia financeira, além de considerações ambientais, éticas e sociais.

Efeitos secundários

A maioria dos estudos até agora não examina se o compartilhamento de alimentos desencadeia efeitos rebote, como os consumidores gastando a economia obtida com o compartilhamento de alimentos em produtos e serviços mais intensivos em carbono, o que poderia não levar ao benefício ambiental esperado.

Possíveis efeitos rebote

  • Aumento do trabalho informal e acidentes: A demanda crescente por materiais recicláveis, como o vidro, aumenta à medida que as empresas buscam cumprir com as políticas nacionais de resíduos sólidos, que exigem a reciclagem de uma porcentagem dos produtos vendidos. Esse aumento na demanda eleva o preço pago pelo vidro pós-consumo, incentivando mais catadores de resíduos (informais) a entrar em aterros e outros locais com práticas de descarte inadequadas para coletar e vender o material. Esses catadores tem péssimas condições de trabalho, rotineiramente famílias inteiras vão catar material para vender e sem adequação de materiais de segurança. 
  • Aumento do volume de material em aterros: Ao tentar reduzir a quantidade de matéria-prima usada por produto, as empresas de embalagens de vidro realizam o redesign de embalagens para usar menos material e, assim, elas produzem garrafas mais finas e leves. Embora essa estratégia reduza as emissões durante a produção e o transporte, também torna as garrafas mais frágeis, resultando em maior quebra e descarte inadequado, aumentando assim o volume de material em aterros. 
  • Transporte de resíduos a longas distâncias: A necessidade de aumentar a reciclagem do material e a limitada capacidade de instalações de reciclagem no Brasil resultam na necessidade de transportar resíduos por longas distâncias, aumentando as emissões de gases de efeito estufa. Este efeito rebote é exacerbado pela estrutura logística deficiente para reprocessar materiais.
  • Perda de empregos em plantas de reciclagem: O foco em melhorar a eficiência do tratamento de materiais pré-reciclagem leva à adoção de tecnologias de separação automatizadas, reduzindo o número de empregos dentro da planta de reciclagem. Isso destaca um efeito rebote social, onde as melhorias na eficiência levam a consequências negativas não intencionais, como a perda de empregos.

Esses efeitos rebote surgem da tentativa de fechar loops de material e estender seus ciclos de vida para maximizar a extração de valor desses recursos. No entanto, as interações e feedbacks complexos dentro do ecossistema circular podem levar a resultados que neutralizam os benefícios ambientais esperados ou até mesmo geram impactos negativos adicionais.

Como mitigar os efeitos rebote

Os autores do artigo deste caso não fazem propostas para mitigar o efeito rebote encontrado.

No entanto, outras experiências mostram que o compartilhamento de alimentos poderia beneficiar populações de baixa renda. Em países como o Brasil, onde a insegurança alimentar ainda existe, outras estratégias poderiam ser feitas para que parte da superprodução de alimentos não fosse destinada ao  aterro.

O ideal seria que não existisse a sobra (poupando recursos como o solo e água, entre outros). Em países de baixa renda, uma solução seria não utilizar plataformas abertas de compartilhamento, já que poucas pessoas de baixa renda têm acesso a elas. Parcerias específicas com instituições para o direcionamento dos alimentos extras seria mais benéfico para a população.

Uma experiência pessoal

O aplicativo food to save, no Brasil, cadastra estabelecimentos – padarias, supermercados e restaurantes – que vendem pacotes surpresas com alimentos perto da data de vencimento. O consumidor não sabe exatamente o que está comprando, ou seja, é uma compra que pode não atender às suas necessidades. Portanto, pode ocorrer que o alimento tenha o mesmo destino inicial, ir para o lixo.

O alcance deste aplicativo também é questionável. O público de baixa renda, que seria mais beneficiado com o desconto nos pacotes de alimentos, não tem acesso a um smartphone para usar o aplicativo.

Segundo a minha avaliação pessoal, a maior parte dos estabelecimentos que aderiram ao aplicativo estão nas regiões nobres de Belo Horizonte, dificultando mais o acesso, e nos fazendo questionar se quem consome estes pacotes surpresa estão substituindo algo que já comprariam, ou compram como um “algo a mais”. Eu mesma comprei para ver o que tinha dentro das sacolas do supermercado, ou para experimentar uma padaria nova. 

Conheça o Food To Save.

Doação de alimentos que sobram nos restaurantes é permitida?

Há muita controvérsia sobre esse assunto e várias publicações na web citam fontes, com as resoluções de diretoria colegiada (RDCs) da Anvisa, para justificar essa proibição. No entanto, consultando as RDCs 216 e 275 citadas, não encontramos essa evidência. 

Consulte você mesmo essas RDCs.
RDC 216 (2004) – Regulamento Técnico de Boas Práticas para Serviços de Alimentação.
RDC 275 (2002) – Regulamento Técnico de Procedimentos Operacionais Padronizados aplicados aos Estabelecimentos Produtores/Industrializadores de Alimentos e  Lista de Verificação das Boas Práticas de Fabricação em Estabelecimentos Produtores/Industrializadores de Alimentos.

Segundo a publicação na web “Como os restaurantes podem doar comida de forma segura?”: “Desde 24 de junho de 2020, a Lei 14.016 autoriza os estabelecimentos que produzem ou fornecem alimentos (in natura, industrializados e refeições prontas) a doar o que não conseguiram vender e assim contribuir para reduzir o avanço da fome e da insegurança alimentar no Brasil, onde 33 milhões de pessoas não têm o que comer.”

Em 2022, foi aprovada uma lei da câmara municipal da cidade de São Paulo, que permite que alimentos descartados por estabelecimentos comerciais especializados sejam doados em São Paulo. Segundo a lei, “ A doação dos alimentos excedentes não comercializados atenderá aos seguintes critérios:
I – os alimentos deverão estar dentro do prazo de validade e observadas as condições de conservação especificadas pelo fabricante, quando for o caso;
II – não tenham comprometidas sua integridade, segurança sanitária e suas propriedades nutricionais mantidas.”

No entanto, o responsável pela qualidade e efeitos do alimento é o estabelecimento que o produziu (não encontramos a lei que define isso, foi indicada a Lei 8.137, mas não encontramos esses termos nela). Por isso, de fato, a maioria dos restaurantes descarta as sobras de comida para não correrem o risco de serem responsáveis pela contaminação dos alimentos.

Segundo essa reportagem, a comida “preparada e exposta em um bufê, por maior que seja a quantidade, precisa ser recolhida dos recipientes e ir direto para o lixo, sem dó. O mesmo vale para as sobras em porções e alimentos que foram preparados na cozinha e não foram armazenados corretamente. Não dá nem para guardar para o dia seguinte: tem que ir para o lixo “.

Como curiosidade, leia o post “Espanha quer multar restaurantes que desperdiçarem comida”.

Conclusão

Esse fenômeno evidencia uma limitação fundamental na capacidade da economia de compartilhamento de alcançar reduções ambientais significativas, já que o menor custo unitário de consumo, graças à eficiência do compartilhamento, leva a um aumento no consumo geral em comparação a um cenário sem compartilhamento.

Os autores mostraram que o efeito rebote no caso pode compensar de 20 à 94% dos benefícios esperados, dependendo da área analisada. No caso de compartilhamento de alimentos, áreas como uso do solo e água têm efeitos rebote de 40% e 35%, respectivamente.

A análise também revela que os efeitos rebote são maiores em populações de menor renda e variam significativamente com as suposições sobre como a economia de recursos financeiros é gasta, especialmente em alimentos.

Essas descobertas sublinham a complexidade dos impactos ambientais da economia de compartilhamento e a necessidade de abordagens mais holísticas que considerem tanto as consequências ambientais adicionais quanto os benefícios socioeconômicos potenciais.

É preciso considerar o comportamento do consumidor ao planejar o compartilhamento de alimentos.

Referência

Meshulam, T., Font-Vivanco, D., Blass, V., & Makov, T. (2023). Sharing economy rebound: The case of peer-to-peer sharing of food waste. Journal of Industrial Ecology, 27(3), 882–895. https://doi.org/10.1111/jiec.13319

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